terça-feira, 15 de abril de 2008

Acordo Ortográfico


Quem sou eu para entrar nesta discussão ? Desculpem o atrevimento. Mas tenho lido e ouvido tantas baboseiras, a favor e contra, que não resisti à tentação de produzir mais umas quantas.

Li algures algures num jornal brasileiro a seguinte frase atribuída a Mia Couto:

"Não faço guerra contra a reforma, mas acho absolutamente absurdo o fundamento da necessidade de fazê-la. Evidente que é uma coisa convencional, não vai mudar a fundo as coisas, mas as implicações que isso tem do ponto de vista económico acabam sempre por sobrar para os países mais pobres. Com esse dinheiro pode se fazer coisas mais importantes como, por exemplo, ampliar o conhecimento que temos uns dos outros.
Circulo por São Paulo e grande parte das pessoas nem sabe o que é Moçambique.
Nunca tive dificuldade em ler livros escritos na grafia brasileira; muito pelo contrário, me satisfaz muito haver essa diferença. No fundo, há uma familiaridade e uma estranheza que são importantes de estar registradas. Acho que a reforma não faz sentido, não subscrevo. "

Será que Mia Couto o disse (ou escreveria) exactamente assim ? Não creio.

Mas, com a sintaxe de Mia ou a do brasileiro autor do artigo, confirma-se em mim a ideia de que as diferenças nas variantes da língua portuguesa, mesmo na escrita, são muito mais do foro da sintaxe e do léxico do que do foro ortográfico.

E nesses aspectos (ou aspetos ?) ninguém irá mexer certamente.

Comer linguiça, com trema ou sem trema, qualquer um que goste o faz... e entende o significado da palavra... e o sabor da dita...

Usar normalmente o gerúndio, também se usa aqui, por terras alentejanas...

E eu, que sou um médico pouco versado em linguística, pergunto: vou escrever perôneo, perónio, peroneo ou peronio ? Esdrúxula, grave ou aguda ? Vogal aberta ou fechada ? "io" ou "eo" ?

Acabar com o acento no pára (do verbo parar) e transformá-lo em para ? Para onde vamos ?

Disseram-me que o H no início das palavras também vai cair !! Será ? Eu, pelo menos, já há muitos anos que escrevo úmero sem h... e estômago com circunflexo. Será que vai ficar estomago ?

Eh OMEM PARA LÁ COM ISSO !!!

No jornal digital brasileiro FOLHA ONLINE de hoje (15/Abril/2008) pode ler-se:
"O Brasil começa a se preparar para a mudança ortográfica... "

O "se" está no sítio (lugar, que sítio no Brasil é outra coisa) errado ou é próprio de cada povo ?

Com acordo ou sem acordo, "picolé" continuará a ser "gelado", "pebolim" é "matraquilhos"... E muito bem.

E, já agora, por falar nisso, aqui fica, com a devida vénia, a transcrição de um artigo de Ruy Castro, jornalista brasileiro, publicado na Folha de S. Paulo:

"Em 1973, fui trabalhar numa revista brasileira editada em Lisboa. Logo no primeiro dia, tive uma amostra das deliciosas diferenças que nos separavam, a nós e aos portugueses, em matéria de língua. Houve um problema no banheiro da redação e eu disse à secretária: «Isabel, por favor, chame o bombeiro para consertar a descarga da privada». Isabel franziu a testa e só entendeu as quatro primeiras palavras. Pelo visto, eu estava lhe pedindo que chamasse a Banda do Corpo de Bombeiros para dar um concerto particular de marchas e dobrados na redação. Por sorte, um colega brasileiro, em Lisboa havia algum tempo e já escolado nos meandros da língua, traduziu o recado: «Isabel, chame o canalizador para reparar o autoclismo da retrete». E só então o belo rosto de Isabel se iluminou.
Há uma reforma ortográfica ameaçando entrar em vigor em 2008 para «unificar» a escrita no Brasil, em Portugal e na África dita lusófona. É uma conspiração de acadêmicos embuçados contra o trema (lingüiça se tornará «linguiça»), o acento circunflexo (vôo, «voo») e o hífen (contra-regra, «contrarregra» — que horror!). Em Portugal, facto se tornará «fato», e lá se vão as consoantes mudas de que eles, com razão, se orgulham. Tal unificação é inócua na prática. Mesmo escrevendo tudo igual, Brasil e Portugal continuarão com suas ricas e necessárias diferenças de vocabulário. Sei disso porque meu livro «Carnaval no Fogo» precisou ganhar notas de pé de página ao ser editado em Lisboa no ano passado. As notas explicavam que picolé é «gelado de palito», pinto é «pênis», ficar tiririca é «ficar furioso», mumunha é «artimanha», pé-frio é «indivíduo azarento», fuzuê é «folia colectiva» e por aí afora. Qual é o problema? Todo mundo leu e entendeu, e vida que segue."

Mandem mas é o Acordo para a "privada" e puxem a "descarga".

Mantenhamos, com amizade e respeito mútuo, as nossas próprias identidades, não procuremos formas de neocolonialismo, venha ele donde vier.

Continuemos todos a ler Mia Couto, Pepetela, Jorge Amado, Eça de Queirós, Arménio Vieira, e tantos outros, no original da sua escrita, aceitando a diferença que só engrandece a nossa língua comum.

No fundo o que eu acho é que o gerar de tanta discussão é mais um desejo de desvio dos problemas realmente importantes do povo português, que convém manter distraído.

Será que o mesmo se passa no Brasil e nos outros países da CPLP?

16 comentários:

  1. Disraídos temos andado ...
    Um português que queira aprender Sueco P. Ex. só encontra material em Lingua portuguesa do brasil ...
    É assim a distração!

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  2. Concordo absolutamente com o acordo, só acho uma bobagem aquela coisa do trema e da perda (para os portugueses) do circunflexo quando o verbo indica plural (ex. têm, vêm)mas as consoantes mudas já vão muito tarde! Li um artigo no jornal de Letras e quis vomitar, qto purismo dos portugueses em relação a língua "deles". Esse orgulho ferido é que vai f**** o acordo mais uma vez. Abraços.

    Belo blogue;) procurava não sei o quê no google e cheguei aqui.

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  3. Olá Wellington

    Obrigado pelo seu comentário.

    Para mim a língua não é dos portugueses, é de todos os que a falam e escrevem (Portugueses, Brasileiros, Angolanos, ...)

    Afinal você concorda com o acordo mas com algumas ressalvas (o trema, o circunflexo...).

    Quanto às consoantes mudas, preparare-se para começar a escrever Omem em vez de Homem, Umanidade em vez de Humanidade, Úmido em vez de Húmido, Orta em vez de Horta, etc, etc.

    E porque não poderemos nós todos manter as nossas identidades próprias ? Se as mantemos na oralidade, no léxico, e na sintaxe, porque não na ortografia ?
    Veja o exemplo do Inglês que muitos povos falam e escrevem de maneira diferente.

    Será que portugueses, brasileiros, angolanos, moçambicanos, cabo-verdianos (o hifmen vai cair) e os outros, não se entendem quando escrevem cada um à sua maneira ?

    Qual a utilidade real do Acordo ? Política ?

    Que acha você se se tratasse de um Acordo Gramatical Completo e não só ortográfico ?

    Pois eu acho que nesse caso eram os brasileiros que iriam estragar tudo.

    Um abraço e volte sempre

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  4. Olá Jorge.
    Também ando a pesquisar o motivo desse acordo... Não entendo e ainda o vejo com maus olhos. Gosto muito deste diferencial entre nossas línguas e admiro algumas particularidades na forma de escrever portuguesa, o que não atrapalha em nada o entendimento.

    O próprio Brasil, grande como é, tem seus sotaques vários, dependendo da região. Alguns lugares precisam de seus dicionários próprios tal as diferenças, e no entanto todos se entendem...

    Ótimo post Jorge.
    Abraços.

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  5. Concordo com voce, Jorge, e a Berenice acrescentou muito bem que até mesmo dentro do Brasil, às vezes, precisamos de "dicionarios" para nos entendermos. Assim como acho bonito e rico que cada regiao tenha o seu sotaque particular, acho bonito cada modo diferente de se escrever. Eno fim das contas, sempre nos entendemos muito bem... pode ser que no primeiro contato com uma variante do portugues haja mal-entendidos, mas creio que isso sò vem a enriquecer ainda mais nossa cultura. (Desculpem-me a falta de acentos nas palavras, escrevo de um tclado italiano... se soubessem a falta que me faz acentuar as palavras...)

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  6. ... é, Jorge, ainda estou por aqui, a curiosidade foi mais forte do que a minha pressa... Lógico que não tive tempo para ler tudo que está postado aqui sobre este assunto, mas também considero uma tolice essa reforma, pois quem nao for capaz de compreender um texto por essas simples diferenças ortográficas, menos ainda o entenderá pela diferenças de sentido que têem muitas palavras, e até mesmo o modo de formular as frases, e isso não mudará, nem deve, porque, como comentei outro dia, num outro blog de um amigo português, essas diferenças são lindas e enriquecedoras, porque se chamam "identidade", e acordo ortográfico nenhum as vais mudar.
    Agora sim, já estou atrasada.
    Inté, como diz minha amiga Ju.
    Abraço.

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  7. Gostei muito do seu texto.Posso induicá-lo com todos os créditos , no final do meu Post, para melhor entendimento????? Obrigada pela amizade.

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  8. Claro que pode.
    Obrigado pela visita.

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  9. O portugues é muito rico em vocabulários mesmo.

    Em São Paulo onde eu moro, e acho que na maioria do Brasil, a palavra que seria usada no primeiro exemplo seria "encanador", para o bombeiro sobra a função de apagar incendios mesmo :D. Mas em alguns locais bombeiro também é quem conserta os canos realmente, mas eu acho esse significado meio estranho.

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  10. Parabéns pelo texto! Sou brasileira e também contrária a esse acordo que só faz distrair dos reais problemas dos nossos países. Achei brilhante o que escreveu e gostaria de usar o conteúdo num texto escolar, se não lhe for incômodo. Com todos os créditos, é lógico! Mais uma vez, parabéns pelo blog!

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  11. Carolina
    Obrigado pela visita e comentário.
    Claro que pode usar. Se for para publicar diga-me depois onde está.

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  12. Gostaria de indicar o texto de Pedro Silva sobre o novo acordo ortográfico no Blog Revista Lusofinia. http://revistalusofonia.wordpress.com/2009/11/24/novo-acordo-ortografico.

    Abraços.
    Fabiola

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  13. Maria Oliveira (@poetadeira) no twitter!!!
    Maria Oliveira (@poetadeira)

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    Postado por Professora Cida Oliveira às 14:04 0 comentários

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