segunda-feira, 10 de outubro de 2016

O inferno das bicicletas


AMESTERDÃO, HOLANDA - As estimadas 800 mil bicicletas existentes na cidade não param por ninguém. Nem querem saber

Andar nas ruas de Amesterdão é um pouco como ser perseguido pela máfia, agentes da judiciária e espiões soviéticos durante a Guerra Fria, todos ao mesmo tempo. Na realidade, o sentimento de estarmos num filme de espiões é tão autêntico que só falta a mala com os códigos de um qualquer míssil nuclear. A desconfiança é constante, olhamos para trás e para os lados com incerteza, e todos nos querem matar. E é mesmo verdade. As estimadas 800 mil bicicletas existentes na cidade não param por ninguém. Nem querem saber. Vêm lançadas com a autoridade de quem “manda nesta merda toda sou eu” e acabou. Não há conversa ou discussão possível.

A prepotência começa ao longe. Mal notam que estamos no caminho, mesmo que seja a largos metros, começam logo a apitar, só para o caso de termos problemas de visão ou algum desejo mórbido de levar com um guiador na cabeça. Somos invadidos por uma sensação de estarmos a infringir num espaço que não é nosso e como castigo somos obrigados à humilhação de olhares agressivos e buzinadelas irritantes. E a coisa não se fica por aqui. Existem mais vias para bicicletas na cidade que passeios – quando os há – e qualquer poste ou corrimão tem como adorno permanente um destes veículos assassinos. Gostava de revelar o número de bicicletas que passam no espaço de cinco minutos numa rua, mas tenho de admitir que a partir da vigésima quinta perdi o interesse e com ele a contagem.

Numa cidade que é completamente plana é incrivelmente cómodo andar de bicicleta e até mais rápido e barato que o eléctrico ou metro. E claro que a última frase faria todo o sentido se eu não fosse português. Mas como sou (e aqui é que começam os problemas), estou habituado a centros comerciais e a estacionar o carro à porta de qualquer sítio, ou pelo menos a dar três voltas, na esperança de algum lugar fique vago. Estou habituado a ir de carrinho para as compras e a despejá-las sem qualquer problema na mala do carro. Estou habituado a não preocupar-me se está a chover ou fazer sol. Pois, o resto do mundo não é assim. Ir às compras tornou-se num jogo do “vamos ver o que consigo carregar nestes dois sacos até casa”. Três litros de água sim, mais dois quilos de frango. Podemos levar detergente, mas é melhor levar a embalagem de 12 rolos de papel higiénico porque com a de 24 ficamos sem lugar para mais nada. Sim, não é só peso, meus amigos. Nestas contas o volume também...conta. Para quem estava habituado a ter carro e mota e agora passou para uma bicicleta lilás com rodas brancas posso dizer que a tristeza é evidente no meu olhar.

Pausa para choro. Voltando às bicicletas. Regra de ouro: quanto pior a bicicleta, melhor. Seria de esperar que na ausência de um carro e mota - as lágrimas a voltarem - se investisse numa bicicleta xpto, gira e com os apitos todos. Errado! Tem de parecer que veio da guerra, com tanta fita cola e remendos que deixe no ar a sensação que mais dia menos dia vai desintegrar-se. E suja, muito suja. Qualquer bicicleta que não se pareça com esta descrição vai ser roubada em menos de nada. Esqueçam lá os cadeados mais grossos que algumas correntes de âncoras de barcos porque não servem de nada. As bicicletas trocam de mãos tantas vezes como...ia fazer uma comparação com um bordel, mas estamos na Visão e temos de manter o nível. Ficam com a ideia.

Há feiras em todo o lado onde se compram bicicletas em segunda mão e há uma forte probabilidade que todo o material à venda tenha sido roubado. A partir dos 65 euros já se compra uma destas bicicletas, com os guiadores virados para dentro e que são muito mais confortáveis que as de montanha, já agora. E se quisermos poupar podemos sempre ligar a um serviço onde pedimos a uma certa pessoa, por telefone, para nos trazer uma bicicleta. Basta dizer mais ou menos as características, como cor, com ou sem mudanças, por exemplo, que no mesmo dia a bicicleta é entregue. Custa 20 euros. Onde será que vão arranjar essa bicicleta? Fica a dica: não é num armazém...

Muito mais haveria para dizer mas esta crónica já vai longa e provavelmente tem coisas mais importantes para fazer do que estar aqui a ler. Despeço-me por agora, incrédulo por escrever a segunda crónica sobre Amesterdão e ainda não ter falado de drogas ou do Red Light District.

(Crónica de José Mascarenhas - Revista Visão - 23.08.2016)

1 comentário:

  1. Esta crónica da VISÃO tinha-me escapado, Jorge Reis.
    Obrigado por a colocar aqui.

    Um abraço.

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