O "Não" dos irlandeses em consulta popular, ao Tratado de Lisboa faz-me pensar no conceito de Democracia Política, tal qual ela é praticada e aceite actualmente, nalguns países ocidentais, nomeadamente em Portugal.
Com efeito a chamada Democracia Política Representativa, nos termos em que se vê em Portugal (e não só) tem levado cada vez mais ao encerramento da sociedade política em si própria, apoderando-se do poder, e clamando que tem legitimidade para tudo fazer, só consultando o povo nas alturas das eleições.
Mais: quando eleitos e no poder, os nossos políticos ainda se arrogam no direito de não cumprir programas e promessas que foram precisamente o que levou muitos eleitores, mais ou menos ingenuamente, a dar-lhes o seu voto. O nosso Primeiro Ministro é exemplo acabado do que eu digo.
Alguém teria votado no Partido Socialista de José Sócrates se soubesse que ele iria subir impostos ?
Professores teriam votado no Partido Socialista de José Sócrates, se soubessem o rumo que a política do Governo iria tomar ?
Os utentes do Serviço Nacional de Saúde, afectados pelas medidas do Ministério respectivo, teriam votado no Partido Socialista de Sócrates ?
Os desempregados, que durante esta legislatura perderam o seus postos de trabalho, teriam votado no Partido Socialista de Sócrates se soubessem que as condições económicas do país levavam a tão grande aumento da taxa de desemprego ?
Porque é que eu votei neste Partido Socialista ?
Cinco perguntas no meio de tantas outras que alguns portugueses, porventura, hoje fazem a si próprios.
E que pensará o Primeiro Ministro ?
Será que ele tem consciência de que, durante a última campanha eleitoral, não falou claramente e que nem sempre disse a verdade aos portugueses ? Ou fê-lo deliberada e conscientemente, movido em exclusivo pelo desejo de ser poder, custasse o que custasse e sem olhar a meios ?
Será que ele tem consciência de que morreram pessoas porque o Governo que chefia e pelo qual é o último responsável encerrou Serviços de Urgências precipitadamente e sem que, no terreno, estivessem completamente implementadas as medidas alternativas ? Ou as vidas humanas não são, para ele, preocupação maior do que meros problemas financeiros ?
Será que ele tem consciência de que aumentou o número de famílias com dificuldades económicas, quiçá, crianças pior alimentadas, pior vestidas ? Será que ele esqueceu quaisquer preocupações de índole social ?
Será que tem consciência do estado a que chegou a Escola Pública em Portugal ?
Será que tem consciência do que está a acontecer ao Serviço Nacional de Saúde ?
Será que os mortos, os cada vez mais pobres, os desempregados que aumentam não lhe pesam na consciência ?
Será que se esqueceu do que significa a ser SOCIALISTA ?
Será que ele, como ser humano que é, tem a consciência tranquila ?
Estas são as perguntas que sinto que faz o povo português.
Por mim, vejo a actualidade do poema "Ser ou não ser" de Manuel Alegre:
"Qualquer coisa está podre no Reino da Dinamarca.
Se os novos partem e ficam só os velhos
e se do sangue as mãos trazem a marca,
se os fantasmas regressam e há homens de joelhos,
qualquer coisa está podre no Reino da Dinamarca.
Apodreceu o sol dentro de nós,
apodreceu o vento em nossos braços.
Porque há sombras na sombra dos teus passos,
há silêncios de morte em cada voz.
Ofélia-Pátria jaz branca de amor.
Entre salgueiros passa flutuando.
E anda Hamlet, em nós, por ela perguntando
entre ser e não ser firmeza indecisão.
Até quando? Até quando?
Já de esperar se desespera. E o tempo foge
e mais do que a esperança leva o puro ardor.
Porque um só tempo é o nosso. E o tempo é hoje.
Ah! se não ser é submissão, ser é revolta.
Se a Dinamarca é para nós uma prisão
e Elsenor se tornou a capital da dor,
ser é roubar à dor as próprias armas
e com elas vencer estes fantasmas
que andam à solta em Elsenor."